Não poderia ter uma criatura melhor que o Boitatá para representar o cinema de horror Brasileiro. O personagem da mitologia Tupi-Guarani é ao mesmo tempo o mais apavorante dos monstros e o mais temido entre os protetores das florestas. Um festival como este tem função semelhante. Ao mesmo tempo que o evento traz ao público uma coleção de narrativas perturbadoras com imagens capazes de fazer morada em seus piores pesadelos, o contato entre estas obras e públicos diversos dá força para a chama do poderoso boitatá preservando a diversidade cultural brasileira. É portanto uma honra enorme poder fazer parte deste projeto que, mais que uma simples mostra de audiovisual, é um evento que celebra facetas exploradas de forma ainda esparsa no cinema nacional. A honra é ainda maior em poder compartilhar a tarefa de curadoria de longas metragens com Petter Baiestorf, este sim outro grande Boitatá. Outro bravo e incansável ser mítico protetor dos cinemas bizarros, grotescos e, por isso mesmo, os mais poéticos. Este é o momento que o leitor acha que estou forçando a barra por usar bizarro e poético em medidas iguais para descrever obras como estas do Boitatá. Eis aqui minha tarefa e missão como escudeiro do Boitatá-mor: mostrar que estes a obra verdadeiramente dionisíaca também é apolínea, ao passo que muitas vezes o pretensamente apolíneo pode se revelar humanamente execrável.

A lista dos longas traz uma seleção singular de visões do grotesco poético. Em “Descaminhos”, Armando Fonseca desvirtua clichês dos filmes de horror-rural para criar uma obra que tem identidade própria e levanta verdadeiras questões sobre a proximidade com a morte. “Às Escuras” é um filme apocalíptico sem zumbis nem catástrofes naturais, mas mesmo assim como os melhores filmes do subgênero usa o limite para remover véus do que chamamos de civilidade. Fugindo mais uma vez da cidade grande, “Os Dragões” é uma delas obras que desafia encaixotamento em gêneros e mescla um conjunto de estéticas em uma obra coesa que assume com propriedade a  árdua tarefa de transportar a literatura de Murilo Rubião para as telas.

Na mostra especial da curadoria, o Boitatá traz dois títulos. O primeiro deles, por mais cabotino que possa soar é recente trabalho deste que vos escreve. No entanto, a pertinência do longa deve ser notada na homenagem que fazemos a Rubens Francisco Lucchetti, o papa da pulp fiction brasileira e roteirista de alguns dos mais célebres trabalhos do cinema fantástico brasileiro. Na mesma seleção, “A Cidade dos Abismos” é um trabalho que equilibra originalidade, ousadia e a mais absoluta necessidade de tratar dos temas abordados neste singular filme que vai muito além dos caminhos tradicionais das narrativas de vingança.

Nossa homenagem a um clássico brasileiro traz o longa de 1986 “A Hora do Medo”. Seria um erro chamar  seu realizador Francisco Cavalcanti de “desbravador” do cinema fantástico brasileiro. Não. Esta é uma analogia equivocada. O correto, nesta mostra acima de tudo, é afirmar o seu lugar de destaque nesta nossa amada floresta escura, ao lado das mais altivas entidades, sejam elas o a lendária cobra dos pântanos, o Curupira, a Cabra Cabriola ou o Zé do Caixão.

Este panteão mitológico do horror brasileiro guarda espaço para o Carlos Macagi e toda a equipe deste evento tão importante quanto divertido. Ele é feito por pessoas devotas ao cinema fantástico para outros devotos ou para aqueles que ainda vão conhecer a palavra divina do Boitatá. Amém, Saravá e Thundercats Ho pra todos! Tenham um ótimo festival!

Paulo Biscaia Filho